Frankfurt - Enquanto em Frankfurt os escritores se divertiam com um jogo pouco original, lançado pelo Paulo Coelho chamado: "Você é escritor ou amigo do rei?"(*), o tradutor Michael Kegler, um dos grandes protagonistas desta feira brasileira, e eu fomos atrás de coisas mais sérias que os devaneios megalomaníacos do escritor mais vendido do mundo, que encheu os ônibus da cidade e as árvores com faixas mostrando sua cara e seu nome. Sorte que o prefeito de Frankfurt não é o Kassab com a campanha Cidade Limpa.
Coisa mais séria para nós escritores (ou seremos amigos do rei? E, no caso, quem é o rei? Dilma? Marta?) é a literatura, os bons livros e os que se interessam por ela e batalham à sério, como o grupo de Bad Berleburg, cidade a 150 quilômetros. Há 20 anos ali foi criada a Literatur Pflaster (Calçada Literária) que, ao longo destes anos, tem feito parcerias com as feiras de Frankfurt.
Certa manhã, Maria Fernanda, do Caderno 2, me perguntou: "Qual o lugar mais insólito em que você já falou?". Citei alguns e foi pena porque ainda eu não tinha passado por Bad Berleburg. Experiência inusitada, falei para 110 pessoas no laboratório de pesquisas da Ejot, multinacional que fabrica parafusos diferenciados. Sentei-me entre aparelhos de alta precisão de curiosas formas, tornos super tecnológicos, e, durante duas horas, os alemães ouviram Rikarde Riedesel - uma das criadoras e organizadoras - lendo, e eu conversando e lendo, porque as pessoas gostam de ouvir a voz do autor. A tradução e as "costuras" foram feitas por Michael.
Era o vigésimo aniversário da Berleburger Literatura Pflaster. Há anos, simultaneamente à Feira de Frankfurt, eles realizam este festival. Fui dos primeiros brasileiros a aqui falar em 1994, ao lado de Ray Gude-Mertin. Naquela época, o evento foi no mesmo local, só que, então, era um Spa, uma clínica, porque a cidade é termal. Agora, mudou, o Spa fechou, a fábrica de parafusos veio e cresceu. O grupo que organiza a Calçada fez um acordo com a empresa que acolheu alegremente a cultura. Ao terminar minha fala, brinquei: "Talvez agora eu possa mudar vários parafusos de minha cabeça que estão enferrujados, corroídos pelo tempo, desgastados, frouxos".
A cidade tem 10 mil habitantes, era noite fria e chuvosa, mas às oito em ponto a sala estava lotada. Cada assistente pagava uns poucos euros, destinados a despesas de infra, ao vinho, sucos e água. Todos nós chegamos sem cachê. A curta viagem, parte em rodovias provinciais, compensa tudo. Atravessávamos túneis em que as copas se fechavam sobre nosso carro. Outono, as árvores estão fortemente amarelas, vermelhas, outras estão verdes ou marrom escuro.
O curioso neste trajeto é passar por dezenas de pequenas aldeias absolutamente desertas, seja no meio de uma tarde, seja começo da manhã. Onde se esconde o povo? Fica todo encerrado em casa? Sensação de um cenário de filme, a não ser por uma e outra luz acesa em uma cozinha, em um sótão. Não é uma região turística, é apenas o interior de um país em seu cotidiano.
Hospedei-me na Landhaus Wittgenstein, bed and breakfast pequena, aconchegante. A proprietária colabora oferecendo a hospedagem aos escritores. Cada um faz sua parte, da farmácia ao importador de vinho do Porto, Gerd Gerhard, fotógrafo e apaixonado por livros. Ele tem documentadas todas as Calçadas com seus autores. Em cada quarto da Landhaus, uma estante com um tema. No meu, o assunto era o caminhar, wanderer, com uns dez volumes sobre o assunto, ficção e ensaios. Neste ano estiveram, antes de mim, Ziraldo, Patricia Mello, Michel Laub, depois viriam Adriana Lisboa, e Luis Ruffato.
Vinte anos atrás descobri esta Calçada, ao lado de Ray Gude-Mertin, tradutora, agente e intérprete. Naquela vez fiquei hospedado na casa, quase mansão de mais de um século, de Gerd Gerhard, que se dedica de corpo e alma ao projeto. Naquele ano, também Caio Fernando Abreu passou por aqui, foi a sua última viagem em vida. Agora, comemoramos os vinte anos, com um jantar no La Scala, comida italiana de primeira, rigatoni ao gorgonzola, perfumado.
Quem passa por Bad Berleburger leva uma pedra consigo. Uma pedra da Calçada que ali vem se formando, ligada ao caminho que cada um de nós constrói ao se dedicar à literatura. Ao sairmos na noite fria e vazia, me entregaram uma caixa da Ejot com dezenas de parafusos de vários tipos e tamanhos: "Algum há de servir para sua cabeça", disseram sorrindo. Duro foi explicar na alfandega alemã que aquela pequena pedra negra e aqueles parafusos não eram para fabricar uma bomba.
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* Pior do que essa atitude antiética de Coelho, um escritor contra os escritores de seu país, foi o discurso do vice-presidente Michel Temer. Deu vergonha!